O presente texto representa somente a minha opinião. A comunidade acadêmica tem assistido um debate no Jornal da Ciência em relação às opiniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC) no que tange ao novo plano de carreira dos docentes do magistério superior federal (Lei 12.772/2012). A SBPC e a ABC realizaram críticas ao novo plano. Ao primeiro texto, seguiu-se uma resposta do PROIFES (Federação de sindicatos de professores de instituições federais de ensino superior). O debate está centrado na aprovação de uma lei para um novo plano de carreira para os professores do magistério superior federal e, por si só, o debate tem grande relevância. Preliminarmente, cabe anotar que as preocupações das três entidades são todas legítimas, já que uma grande parte da produção científica e tecnológica nacional está adstrita às universidades federais. Os institutos de pesquisa ligados ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação respondem por uma parte bem pequena do volume produzido, apesar de representarem uma parcela qualitativamente significativa do sistema nacional.
Os pontos centrais tocados pela SBPC e pela ABC, na matéria veiculada pelo JC e-mail n. 4655 (29 de janeiro de 2013) foram: 1. A obrigatoriedade de entrada pela classe de piso do magistério superior (professor auxiliar, independentemente da titulação); 2. A possibilidade de que a classe de professor titular fosse alcançada sem prévio concurso público de provas e títulos, podendo haver uma progressão interna; 3. Exigência legal somente para o título de bacharelado no ingresso dos novos docentes.
Há um claro consenso entre o Ministério da Educação (MEC), a SBPC, a ABC e o PROIFES no sentido de que a dedicação exclusiva (DE) foi devidamente valorizada pelo novo plano de carreira.
O presidente do PROIFES respondeu as críticas em nota da Federação de Associações e, em síntese, replicou: 1. A exigência de entrada na classe inicial do magistério superior é uma determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), pois o sistema anterior seria inconstitucional — na opinião dele —, pois tanto o artigo 3º da Lei 7.596 quanto o Decreto 94.644 são de 1987, ou seja, são anteriores à Constituição Federal de 1988; 2. Que a progressão para professor titular sem novo concurso público é boa porque exigirá muitos anos de experiência dos docentes em vários níveis da carreira e, também, que 5% (cinco por cento) do quadro poderá ser formado por cargos de professores titulares livres, isolados e acessíveis por concurso público, simétricos aos titulares promovidos por bancas internas; 3. As IFES vão poder realizar concursos públicos para professores auxiliares com doutorado, pois a autonomia universitária assim permite.
Respeito à opinião do presidente do PROIFES. Todavia, a impressão que se tem é que a Lei 12.772/2012 foi redigida sem o merecido cuidado. Tal falta de esmero se traduz em insegurança jurídica. Comentarei os pontos indicados no debate entre a SBPC e a ABC com o PROIFES. Acredito que a legislação tem problemas que merecem correção e que o Ministério da Educação pode corrigir tais temas em curto prazo, sem grandes complicações, além de emitir notas técnicas para fixar interpretações uniformes e razoáveis, minorando a insegurança jurídica.
1. Exigência de entrada como professor auxiliar
É verdade que não há previsão de perda financeira para os docentes que ingressem após março de 2013, início da efetivação do novo plano de carreira. Importante frisar que a estrutura remuneratória continua a mesma: o vencimento básico, acrescido de um adicional por titulação (denominado “retribuição por titulação”). Um candidato doutor ingressando depois da data inicial de vigência do novo plano de carreira, em uma universidade federal, irá receber R$ 8.049,77 brutos e será alocado na classe de professor auxiliar 1 (com dedicação exclusiva). Hoje, o vencimento básico de um professor adjunto 1 (com dedicação exclusiva) é R$ 3.553,46 e a sua retribuição por titulação é de R$ 4.073,56. É só somar e notar que o total, em fevereiro de 2013, é de R$ 7.626,99, bruto. Ou seja, aumentou a remuneração aos docentes ingressantes, mesmo que sejam alocados na nova classe de professor auxiliar, desde que os mesmos tenham doutorado. Não há falar em perdas remuneratórias.
Contudo, o argumento de que a entrada precisa ser feita compulsoriamente na classe de professor auxiliar em relação a qualquer exigência constitucional não me parece ter razoabilidade. A legislação das carreiras da área de ciência e tecnologia é de 1993 (Lei 8.691/1993) e determina que a entrada dos seus pesquisadores se efetivará no piso de cada classe, de acordo com a titulação exigida no concurso público de regência. O parágrafo único do artigo 3º da referida lei é bem redigido, pois determina que serão requeridos os títulos de graduação e de pós-graduação, conforme o caso, devidamente validados (nas classes de pesquisadores titular, associado e adjunto se requer doutorado, além de outros requisitos; na classe de assistente de pesquisa: mestrado e outros requisitos; não há previsão para pesquisador auxiliar somente com bacharelado naquela carreira). A boa redação é evidenciada pelo fato de não trazer dúvidas ou inseguranças. Ainda, sobre a relação entre a classe inicial e a entrada na carreira, o artigo 18 da Lei 8.691/1993 (carreiras de ciência e tecnologia) é tão explícito que não precisa ser explicado; basta transcrevê-lo: “o ingresso nas carreiras referidas nesta lei dar-se-á no padrão inicial de cada classe, após a aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos”. Por fim, a lei é de 1993 e nunca foi objetada como inconstitucional. Em minha opinião, não há sentido falar em nenhuma inconstitucionalidade latente neste modo de ingresso, no meio da carreira, já que o mesmo é previsto legalmente para os pesquisadores. Aliás, não vejo dispositivo constitucional que pudesse ser mobilizado para alegar tal inconstitucionalidade.
2. Progressão para professor titular por aferição interna
Cabe anotar que se algo foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no passado, foi a denominada “ascensão” (ou, o acesso, como também era doutrinariamente nomeado). A ascensão era uma forma de provimento (entrada em cargo público) na qual um servidor poderia fazer uma seleção interna e subir para um nível ou classe fora da sua carreira, tal como previsto no revogado inciso III do art. 3º da Lei n. 8.112/90, sem a realização de um concurso público específico. Exemplo, um agente de polícia federal poderia ser alçado ao cargo de delegado, por meio de um concurso interno. Na prática, esse modo de provimento permitia mudanças entre os cargos dos servidores públicos federais efetivos sem a realização de outro concurso público. Esse debate nunca afetou as IFES, já que, nos termos do Decreto 94.644/1987, sempre foi obrigatório o concurso público prévio para o cargo de professor titular, que era visto como cargo fora da carreira. Substantivamente, eu não tenho críticas ao sistema de progressão avaliada dos docentes do próprio quadro para progredir à classe de professor titular, dentro da carreira. Há uma previsão de interessante sistema avaliativo e que parece ser relevante. De outro lado, a possibilidade de existir um cargo isolado de professor titular livre permite o ingresso de profissionais de qualidade, egressos de outras partes do sistema e, até, do exterior. O modelo pensado é bom e deve ser protegido. Em defesa do novo sistema, inclusive, deve ser frisado que a carreira dos pesquisadores em ciência e tecnologia (Lei 8.691/1993) permite a progressão da classe de associado para a de titular, bem como a entrada direta como pesquisador titular (artigo 4º), o que demonstra que não se trata de um problema jurídico e, sim, de uma truncada redação da Lei 12.772/2012. Algo sanável, portanto.
Contudo, devo alertar para uma questão de risco, relacionado ao problema da atual redação truncada: se continuamos a ter 5% (cinco por cento) dos cargos do quadro como de professores titulares livres — que somente podem ser acessados por novo concurso público —, o acesso aos demais cargos de titular, por meio de provas internas, não poderá ser considerado inconstitucional? Pode ser objetado que seria uma forma de ascensão? Afinal, os dois cargos de professor titular são, em verdade, ignorando o nomen iuris, o mesmo cargo público. Um é isolado e o outro faz parte da carreira. A diferença é que alguns cargos possuirão uma rígida avaliação interna, com reserva de vagas para servidores docentes do quadro efetivo, e os outros terão bancas de concursos públicos, sendo acessíveis por quaisquer candidatos que preencham os requisitos. Seria importante que o MEC preparasse uma nota técnica para reforçar juridicamente a possibilidade de progressão à classe de professor titular como constitucional, tendo a Lei 8.691/1993 no horizonte. Não obstante isto, ninguém tocou no assunto nesta hipótese.
3. As universidades poderão fazer concursos públicos para professor auxiliar com doutorado em decorrência da prática estabelecida e da autonomia
É bem verdade que, em princípio, poderão. Porém, cabe notar que a autonomia universitária, nessa chave, permitirá que sejam feitos também para bacharéis, já que a Lei 12.772/2012 é omissa em exigir, mesmo com a notação “preferencialmente” (que fosse), o título de doutor, nos termos do parágrafo 1º do seu artigo 8º. Aliás, no meu entender, o referido artigo está em flagrante antinomia com a Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9.394/1996) que assim dispõe, no seu artigo 66: “a preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado e doutorado”. A pressuposição do dispositivo seria que o ingresso no magistério superior deveria exigir, ao menos, o título de especialista e, preferencialmente, o título de doutor, depois o de mestre. Para mim, está límpida a redação do artigo 66 ao afirmar que o docente do magistério superior precisa, inexoravelmente, ter alguma formação posterior à graduação. Logo, a titulação mínima ao ingresso, nos termos da LDB, ou seja, após 1996, deveria ser o grau de especialista. Na prática a redação da Lei 12.772/2012 ignorou esse dispositivo da LDB. Ou, pior, considerou que a principal lei federal sobre educação possui disposições programáticas e que não devem ser observadas pelo legislador ordinário na produção de novas leis para o setor. Cabe frisar que a LDB possui outras disposições sobre carreira docente. Em síntese, a autonomia universitária pode escorar a interpretação de que as universidades federais são livres para fazer concursos públicos com exigência de bacharelado, sem antes tentar captar doutores ou mestres, em flagrante confronto contra a lei vigente (LDB)? Na mesma linha, será que o artigo 66 da LDB seria potencialmente inconstitucional, também, por violação ao artigo 207 da Constituição Federal? Ou, pior, é aceitável considerar que a LDB é meramente programática ao tratar das políticas públicas para as universidades federais, em especial em uma matéria tão relevante quanto ingresso na carreira do magistério superior federal? O assunto, nessa chave, continua intocado.
Em síntese, o projeto de lei já continha esses equívocos na redação e pouco foi analisado nas duas casas do Congresso Nacional, onde tramitou. Havia pressa e isso era compreensível. O Ministério da Educação se empenhou para aprovar a nova lei, de olho no fim de uma greve. O MEC e o PROIFES defenderam o projeto, já que continha um cronograma de reajustes que podia não ser o melhor, em especial pelo tempo de efetivação (2015), mas que, ao que parece, foi o possível. As outras propostas de carreira que circularam no período da greve continham problemas, tais como subsumir a retribuição por titulação à classe e ao nível na carreira, somente atentando para o tempo de serviço. Assim, tal proposta — não efetivada — faria com que professores somente com bacharelado fossem remunerados no mesmo patamar que os docentes com doutorado, se estivessem no mesmo nível numérico. Mais grave, a progressão vertical por titulação não existia, nem as referências nominais das classes (auxiliar, assistente, adjunto e associado). Em suma, as propostas alternativas sumiam com titulação e demais distinções acadêmicas em prol da experiência profissional como o patamar avaliativo central.
Cabe ainda indicar que a manutenção das indicações nominais das classes foi um avanço. Ela faz parte da mantença de algumas práticas bem sucedidas que deveriam — e devem — ter continuidade em relação à carreira do magistério superior. A carreira de pesquisador em ciência e tecnologia é um bom exemplo de como os padrões da carreira docente federal foram replicados em outras leis. O mesmo ocorre em diversas convenções coletivas de trabalho de docentes da educação superior privada pelo país. A carreira do magistério superior federal fixou um padrão que é observado. É importante corrigir o sistema de entrada com paridade de classe (adjunto) e de titulação (doutorado), também porque o modelo das IFES (instituições federais de ensino superior), se continuar equivocado, pode ser replicado em prejuízo a outras categorias.
Para concluir, o PROIFES poderia conversar com a SBPC e a ABC em prol de convencer o ministro Aloísio Mercadante — professor universitário e um dos fundadores do Sindicato nacional ANDES (Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior) — para pedir a aprovação de uma medida provisória relacionada a sanar o ponto mais complicado. Seria relevante efetuar uma tardia boa redação para o artigo 8º da Lei 12.722/2012 que permita concursos para professores adjuntos, nos moldes da Lei 8.691/1993 (carreira de pesquisador em ciência e tecnologia) e em simetria ao sistema antigo, dando preferência — não obrigação, por óbvio — aos doutores, mestres e especialistas, em respeito ao artigo 66 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Alexandre Kehrig Veronese Aguiar é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, doutor em Sociologia pelo Iesp/Uerj e diretor da Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi).
Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-fev-13/alexandre-veronese-lei-dubia-torna-incerto-futuro-docentes-federais