Carnavalizando a escola de lata

Carnavalizando a escola de lata

Por kiki Givigi 05/02/2015

 

kikiSusto. Boquiaberta, minha língua não roçava mais o espelho d’àgua que amenizava o abismo entre os livros da estante da biblioteca e  as salas cotidianas.  Afogaram a paisagem do lago no metal. Masmorras modernas, onde certa vez vi homens padecer.  Já havia muros demais e agora…latas. Sequestrada por uma linha de fuga fui levada a percorrer, fugir, criar, traçar…Como produzir na testa um olho vibrátil que desarranje a fácil associação triste entre a imagens em cadeia? Como desencadear e molhar as mãos em material à espera de criação – papier mache – e compor?  O que fazer para decompor latas? (que desejo de Manoel de Barros em mim!) Ah…o carnaval, o carnaval…

Era também a semana da visibilidade das pessoas transgêneros, destas que embaralham códigos e são lançadas à margem das definições, enquanto garantem, com isso, a segura parede de ferro das fronteiras definidas. Destas pessoas que perturbam a escala de gêneros perfeitos dos salvos pela heteronormatividade nordestina, quando sua ellegance irritante de meninas de  bagos esquecidos entre as pernas, passeia no Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Sexualidades femininas/masculinas decompunham as passagens rijas. Isto tudo acontecia lá, enquanto a educação fenecia em latas e eu pensava…e o carnaval? E o carnaval?

‘É necessário, é temporário, é provisório’, ressoavam as caixas de lata promovidas à escola. Havia uma orquestra de mau gosto que tentava sempre nos convencer que há um programa essencial, uma etapa inevitável, uma forma escalonada e que, por ela, devíamos passar. Modelo-estrato, redundância da política idealista.  Paralelamente, e no fim das etapas, haveria um território infinito, tanto quanto essencial, onde este caminho de escalas pode nos levar. Devemos percorrê-lo, atad@s na ‘suposta concretude’ e perder a sensibilidade fabricada pelos encontros. Desejo, desejo fabricado no corpo … corra, corra deste! Caminhemos todos em direção a central fornecedora de sentidos e deixemos a educação-lama-papier-mache para os que gostam de sujeiras, diziam as vozes da moral de plantão!

 E as meninas e meninos double percorriam o mundo entre as escolas de lata e desenvolvendo seus olhos vibráteis ofereciam a diferença que caminha esquizofrênica em busca de expressão.Diferença-mache que afirma a produção. E o carnaval?

Via-se o contraste entre educação molar e molecularidades circulantes, rodopiantes, vacilantes… Entre os culhões de metal, floresciam pênis e vaginas aquosos, intumescidos de um plasma que afirmava gêneros fora das latas, gêneros que não cabiam nas latas. Gêneros constituídos de sexualidades perturbadoras das normas, feitos do pecado da experimentação, gêneros-desejos-de-carne. El@s tinham “as pegadas dos fluxos do mundo no corpo: sensações de todo tipo, investidas mais ou menos intensamente pela força do desejo”, como me lembrava Suely Rolnik na conversa sobre tristes gêneros, referindo-se às limitações da verdade binária.  Ali onde os fluxos se deslocam, vulneráveis aos terremotos do mundo, as composições se fazem, desfazem, refazem, sem a encenação binária. Ali evidenciam as inumeráveis forças do devir. Diante del@s, papai-mamãe é teatro e assume seu lugar de investimento social no desejo e de política de verdade. Borbulha quente um processo incessante que promove a dispersão de um sistema de referências (aquele que faz funcionar um regime político da libido) e conexões reais entre linhas que fogem, fogem, fogem.  E o carnaval? E o carnaval?

Os gêneros plasmavam sobre as latas e eu pisava de salto dourado Luis XV, com meu esplendor vermelho monumental cheio de penas e paetês na cabeça, respirando carnaval, bebendo carnaval, acoplando máquinas em máquinas, corte e fluxo. Figuras brilhosas, pedacinhos de coisa qualquer fosca, retalhos, jóias, materiais desassociados, despejados na ladeira e nos atalhos desafiam os agenciamentos estratificados – molares – em busca de estratégias de expressão. Meu gênero- professora não cabia diametralmente na lata e isso já era a primeira peça do bricoleur: a professora que-gora-e-gruda seria estendida até o limite, carnavalizada pelos acoplamentos múltiplos com os desejos das trans-capitus-carnavalescas.  Ufa! As intensidades seriam agenciadas e escapariam também, permitindo a passagem da molaridade àquilo que devém a educação – suas singularidades e molecularidades. Mas, nada estava dado. Era preciso carnavalizar. Os encontros instaurariam e acoplariam máquinas que desestabilizassem as organizações –orgânicas (organismo) do corpo: tudo pode, tudo suporta, tudo espera! A vida limítrofe do corpo produziria experimentações sem cadeias causais que enroscadas ao plano imamente geraria afectos próprios à destruição dos micro-facismos. Quem sabe o carnaval poderia ser tão renitente com seu ataque à narciso que ele – o próprio narciso-  deslocar-se-ia do espelho do eu à sua fábula, de onde poderíamos avistá-lo em seu caráter de tecnologia de controle?!  Constranger Narciso, eis a tática! Teríamos, neste processo, a educação livre de latas e, ao mesmo tempo, livre de desejos repassados e enquadrados nas referências imóveis?  Ao mesmo tempo em que as máquinas cortam, elas mesmas, máquinas em máquinas produzem fluxo, uma espécie de continum descontinum.

O encontro com eleelas, o bricoleur de multiplicidade, queerizando os gêneros e mostrando que, apesar da violência dos dias, a alegria pode permitir que objetos parciais se liguem de intensidade a intensidade, carnavalisticamente, engolindo uns aos outros, deu um tom às latas, quase desfazendo-as.  Passando delas, entrecortando-as, objetos parciais vão dando passagens uns aos outros – folders, cores, bandeiras, escovas progressivas, cachos desarrumados, pilots,- infinitamente passando, anarquizando os signos da educação. Práticas e objetos difusos remetem-se para fora de si, para fora de nós e visibilizam afectos bonitos, doces e agressivamente afirmativos. È carnaval!

O carnaval nos salvou das latas! Ele permitiu que destruíssemos materiais e com as latas rasgadas, inúteis e vazias remetêssemos as peças à oficina do tempo, à virtualidade que mora na imanência. Em platô de intensidades com Manoel de Barros as latas adoecem na terra, desmancham-se, namoram com as borboletas e são pousadas por passarinhos. Latas só podem ser escolas quando são destruídas de seu ofício de lata-indústria-educação-masmorra. Latas só podem ser escolas quando nelas pousam as esquisitices do tempo e elas emendam-se aos ritos de desfazimento: como os gêneros só podem ser felizes quando deixam o binarismo adoecer e reconhecem a operação artificial que o produz. Operação queer-fim-das-latas.

Não é contra as latas, é por entre elas, é diante delas, é esquecendo delas, é fazendo-as de vergonhosos viveiros de vida para que elas se mudem dali de onde a educação deve brotar quintais, plantas, pessoas, árvores, dias. A estratégia é compor com seus objetos parciais, expor seus pedaços, abrir atalhos nela até a comunidade de guaxinim, até @s menin@s trans da UFRB: carnavalizar!

Lembrei-me d@ profess@r sisudo que tem medo de ânus e vagina: o professor que gora e gruda (mas não têm medo algum de silenciar as violências de gênero). Lembrei-me de Cortazar e seus cronocópios –ficções que são sujeitos sem rotina e organização – e seus guizos. Larrosa fala de dar guizos ao professor sisudo e de faze-lo rir um pouco. Morrendo de rir dele, posso comer o guizos, engolir as botas, e canibalizar a alegria das meninas trans em festa coletiva, incorporando à minha alma frágil, a alma das meninas-meninos-coragem! È carnaval, é carnaval! Não mais a educação-guerreira-medrosa assombraria a alma d@s valentes trans e nem a minha pobre alma (não se come guerreiro medroso!)! A antropofagia carnavalesca ensinou-me a associar-me às forças e compor com elas ao come-las. Distancio-me do medo, da morte, do gozo circunscrito ao Édipo, ao limitado aceno da ratio studiorum das latas e abro a boca que engoliu os guizos vomitando educação-vida-nos-quintais, como na roça da vida!

As meninas trans salvaram-me da escola de latas.  Latas do quintal do CFP, quase idênticas às masmorras de Hartung, que lá no Espírito Santo foram compradas para encarcerar pessoas e foram parar nos dossiês de direitos humanos de Genebra. Comprou-as também para educacação-tortura. Não funcionou. Fui salva pelo carnaval, pela antropofagia.

Salvaram-me as trans, permitiram-me o carnaval!! Agora, ajudem-me a pensar em devorações, em bricolagens, em pessoas impensáveis que rasguem a bestialidade da humanidade. Ajudem-me a passar, a atravessar o desejo-teatro edipiano e em movimento fluxo-corte ligar-me descontinuamente ao desejo-máquina, produção incessante de acoplamentos com trans, patos, ricardos, bandeiras,Victor, riachos, capitus, sapos,Priscila, lagartos,Camila, pássaros, réguas, sellena, apur,Leilane, livros, histórias e herberts, sempre, continuamente.

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