Na mesma semana em que os trabalhadores brasileiros tomaram as ruas e conseguiram suspender a votação do Projeto de Lei que regulamenta as terceirizações (PL 4330), o Supremo Tribunal Federal resgatou e votou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1923, contrária às normas que regulamentam as organizações sociais. O STF decidiu pela validade da prestação, por essas organizações, de serviços públicos de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação ao meio ambiente, cultura e saúde.
A ADI 1923 questionava a legalidade da Lei 9.637/98, que dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais e a criação do Programa Nacional de Publicização, bem como o inciso XXIV, artigo 24, da Lei 8.666/93 (Lei das Licitações). A ação foi ajuizada há mais de 15 anos e sua votação havia sido suspensa em maio de 2011, com pedido de vistas do processo pelo ministro Marco Aurelio.
Na sessão plenária desta quinta-feira (16), o STF considerou a validade parcial da Adin apenas no que se refere às leis de licitações, dando interpretação constitucional às normas que dispensam licitação em celebração de contratos de gestão firmados entre o Poder Público e as OS. O ministro Luiz Fux emitiu o voto-condutor, que foi seguido pela maioria.
Em seu voto, Fux ressalta que “Em outros termos, a Constituição não exige que o Poder Público atue, nesses campos, exclusivamente de forma direta. Pelo contrário, o texto constitucional é expresso em afirmar que será válida a atuação indireta, através do fomento, como o faz com setores particularmente sensíveis como saúde (CF, art. 199, §2º, interpretado a contrario sensu – “é vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos”) e educação (CF, art. 213 – “Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que: I – comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação; II – assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades”), mas que se estende por identidade de razões a todos os serviços sociais”.
O ministro destaca também que “cabe aos agentes democraticamente eleitos a definição da proporção entre a atuação direta e a indireta, desde que, por qualquer modo, o resultado constitucionalmente fixado – a prestação dos serviços sociais – seja alcançado . Daí porque não há inconstitucionalidade na opção, manifestada pela Lei das OS’s, publicada em março de 1998, e posteriormente reiterada com a edição, em maio de 1999, da Lei nº 9.790/99, que trata das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, pelo foco no fomento para o atingimento de determinados deveres estatais.”
No tocante à contratação de trabalhadores pelas OS para a prestação de serviços públicos, Fux enfatiza que “o que há de se exigir é a observância de impessoalidade e de objetividade na seleção de pessoal, conforme regulamento próprio, 33, mas não a submissão ao procedimento formal do concurso público, devendo ser interpretada nesse sentido a parte final do art. 4º, VIII, da Lei, ao falar em regulamento próprio contendo plano de cargos dos empregados.” Confira a íntegra do voto do Ministro Fux.
Avaliação
Para Claudia March, secretária geral do ANDES-SN, a decisão é muito preocupante e representa um ataque direto àqueles que lutam contra a precarização das condições de trabalho e em defesa dos serviços públicos de qualidade e tem por objetivo dar continuidade à contrarreforma do Estado, iniciada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, sob a tutela do então ministro Bresser Pereira. A diretora do ANDES-SN lembra que não havia uma restrição à Lei 9.637, promulgada em 1998, mas desde antes de sua aprovação, a mesma já vinha sendo questionada e combatida pelos movimentos sindicais e sociais, tanto na esfera política quanto jurídica, o que impediu o avanço das OS para todos os setores previstos na Lei.
Ela lembra que logo após a aprovação da Lei, o serviço público sofreu uma grande expansão das contratações via OS fundamentalmente no Sistema Único de Saúde, mas com casos também em outras áreas.
De acordo com a secretária geral do ANDES-SN a experiência de mais de uma década mostra que, ao contrário do que alegam os defensores da contrarreforma, esse modelo de gestão é mais oneroso à União, aprofunda a precarização dos serviços públicos e abre espaço para a corrupção, com o superfaturamento e desvio de verbas. Os exemplos, vistos especialmente na saúde pública, apontam numa piora à assistência ao usuário do serviço público, com uma alta rotatividade dos usuários nos hospitais para ampliar a ‘produtividade’, fragmentação dos serviços, precarização e intensificação do trabalho. Existem questionamentos inclusive do Tribunal de Contas da União (TCU), de que as OS não apresentam uma melhora na prestação dos serviços. Claudia ressalta que com a decisão, o Supremo pode colocar fim à possibilidade de questionamentos à constitucionalidade dos contratos em várias esferas de prestação do serviço público, incluindo a Educação, com as Organizações Sociais, mesmo por parte do TCU e CGU.
Para a diretora do ANDES-SN, é importante ressaltar que os argumentos utilizados por Bresser Pereira para a contrarreforma estão sendo resgatados. “Adotar as OS passa pelo pressuposto de flexibilizar o controle, substituir o controle social e colocar organismos de controle interno, algo próprio do mercado. Para nós isso é grave, pois vai contra um conjunto de questões que defendemos no serviço público, inclusive em termos de autonomia de gestão”, reforça.
A secretaria geral do Sindicato Nacional lembra ainda que no caso da Educação Pública, a decisão do STF vem meses após a declaração do então presidente da Capes, Jorge Almeida Guimarães, da intenção do Executivo Federal em adotar uma organização social para a contratação de docentes sem concurso público.
“Isso é muito preocupante, pois se dá em um momento em que tanto os direitos garantidos na CLT quanto no RJU [regime jurídico único] estão sendo rasgados, com ações como a votação do PL 4330, que representa uma minirreforma trabalhista, com medidas provisórias que flexibilizam os direitos dos trabalhadores e a edição das medidas provisórias 664 e 665, e especificamente no setor público, a possibilidade de uma generalização da contratação via Organizações Sociais, o que é extremamente preocupante em relação à garantia dos direitos dos servidores, mas fundamentalmente à qualidade dos serviços públicos prestados”, avalia.
Claudia March pondera que não foi por acaso que a Ação Direta de Inconstitucionalidade foi votada nesse momento. “Na mesma semana em que o Congresso está discutindo a flexibilização dos direitos dos trabalhadores do setor público e privado e em que conseguimos retirar do PL 4330 a possibilidade da terceirização da atividade-fim na administração pública, uma alternativa se constrói para consolidar isso. O STF viabiliza a constitucionalidade de uma Lei que estava sendo questionada desde 1998. Isso não é por acaso”, destaca.
A diretora do ANDES-SN ressalta que a Assessoria Jurídica Nacional da entidade já está estudando o conteúdo da decisão e dos votos dos ministros para um parecer detalhado da votação, o que irá subsidiar as discussões e a reação do movimento. Claudia lembra que o Setor das Instituições Federais de Ensino (Ifes) do Sindicato Nacional se reúne na próxima semana em Brasília, para discutir a campanha salarial dos professores federais, a construção da greve dos docentes das IFE e este assunto será pautado.
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*Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF