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A luta das mulheres e a construção de um “novo normal” realmente novo

A luta das mulheres e a construção de um “novo normal” realmente novo
Profa. Renata Gomes, vice-presidente da APUR


Neste 8 de março, há dois anos do início de uma pandemia que mudou a vida de todos os habitantes do planeta e às vésperas de uma muito ansiada (mas também muito ansiosa) volta ao ensino presencial, é urgente pensarmos a importância da luta das mulheres para a construção de um mundo que não seja “um novo normal” tão (ou mais!) penoso e precário quanto o “antigo normal” que vivemos antes da pandemia.

No Brasil, particularmente, o “normal” que vivíamos desde pelo menos o golpe misógino, perpetrado contra e através de uma mulher, incluía perdas para as trabalhadoras que são versões ainda mais perversas daquelas vividas pelos trabalhadores em geral. No (des)governo Temer, em que as mulheres deveriam ser apenas “belas, recatadas e do lar”, medidas como a “reforma” trabalhista atingiram não só o trabalho produtivo de todo o proletariado, mas também o trabalho reprodutivo, historicamente realizado pelas mulheres. Assim, mesmo que, por exemplo, o retrocesso tentado pela “reforma” trabalhista em relação à atividade insalubre para gestantes e lactantes tenha sido posteriormente revertido pelo STF, a fragilização geral das relações de poder entre patrões e empregados cobrou um preço ainda mais alto das trabalhadoras, dentro e fora da atividade laboral em si. Por outro lado, a PEC do Teto de Gastos, ao precarizar todos os serviços públicos – incluindo educação, saúde, moradia, previdência – atingiu também em particular as mulheres, que, tradicionalmente liderando a rede de cuidados a filhos, doentes e idosos, acabam arcando com a dupla ou tripla jornada de trabalho assalariado (e/ou informal) e trabalho doméstico, para suprir as crescentes carências impostas pela austeridade neoliberal, cenário que só se agrava desde então e chegou a seu ápice com a pandemia.

Por sua vez, o (des)governo Bolsonaro, para quem mulheres só não “merecem” ser estupradas se forem “feias” e cuja própria filha mulher é considerada uma “fraquejada”, aprofundou as perdas para as mulheres. Assim, além das já citadas “reformas”, continuaram sendo atingidas por cortes orçamentários diversas políticas públicas voltadas às mulheres, como o combate à violência de gênero (que atinge de maneira desproporcional mulheres negras, mas também mulheres trans e a população LGBTQIA+ como um todo). Ao mesmo tempo, o próprio conceito de políticas voltadas a essas populações foi corrompido pela presença de uma fundamentalista religiosa e reacionária como Damares Alves, chefiando o ministério rebatizado sintomaticamente como da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Em particular, os direitos reprodutivos das mulheres brasileiras vêm sendo atacados por todos os flancos, como, por exemplo, no caso em que a ministra tentou evitar a realização de um aborto legal numa menina capixaba de dez anos, interferindo nos bastidores, a despeito do bem estar físico e psíquico da criança, vítima de violência sexual. Este caso é um, entre muitos exemplos de abortos autorizados pela justiça, mas dificultados ou, na prática, impedidos por agentes do governo ou seus aliados na sociedade civil, que pressionam com vigílias e ameaças as mulheres e seus familiares. Esses casos, obviamente, também atingem de maneira mais perversa as vítimas não brancas e de baixa renda, cujo acesso a direitos básicos é historicamente mais precário.

Seguindo esse curso, na pandemia, as perdas para as mulheres continuaram sendo uma versão singular daquelas experimentadas pela sociedade em geral, acrescidas, como sempre, de todos os atravessamentos étnico-raciais e de classe. Não à toa, uma das primeiras vítimas da pandemia foi uma trabalhadora doméstica, contaminada pelos patrões recém-chegados da Europa. Ao longo de toda a pandemia, a classe trabalhadora se viu entre o dilema do desemprego e do risco de contaminação decorrente do trabalho, sendo que, novamente, coube às mulheres arcar com o já referido trabalho reprodutivo, num cenário em que escolas e creches foram fechados como medida de contenção da pandemia. O fardo do trabalho reprodutivo foi tão agravado na pandemia, que atingiu de maneira inédita mulheres da classe média, que tiveram que equilibrar o privilégio de classe do trabalho remoto e o cuidado a crianças, doentes e idosos numa escala que não atingia os homens da mesma forma. Esse impacto foi bastante real entre as docentes e as demais servidoras desta universidade, que, felizmente, ao contrário do cenário geral no país, teve a sensibilidade de, atendendo as demandas de suas trabalhadoras e entidades de luta, criar medidas de mitigação para tal situação.

Este resumo (extremamente sintético!) dos problemas atuais do país pretende servir para nos fazer pensar não apenas na terra arrasada a que chegamos – com 650 mil+ mortos só no Brasil, além de milhares de sequelados, órfãos e destituídos – mas sobretudo nos caminhos para construir não um “novo normal”, como dissemos, que apenas atualize a precariedade e a dor que resultam irremediavelmente do combo capitalismo patriarcal racista, mas um mundo mais próximo daquilo cujas lutas relembradas pela data de hoje, no seu melhor, tentaram e tentam construir. Assim, se pensarmos nos desafios impostos pela “reforma” trabalhista e pela PEC do Teto, por exemplo, torna-se urgente defender a recentralização da luta da esquerda anticapitalista em torno não apenas do trabalho produtivo – luta por emprego, direitos trabalhistas, salário etc – mas também do trabalho reprodutivo, terreno de disputa e exploração cada vez maior no capitalismo contemporâneo. A luta das mulheres trabalhadoras para ter seu trabalho doméstico reconhecido pelo que é – trabalho! – pode informar uma luta socialista que reconstrói o próprio entendimento da exploração capitalista não apenas focada na atividade laboral, mas em todo o fluxo de vida cada vez mais capturado e explorado, direta e indiretamente, pelo capitalismo financeiro e sua infinita colonização e subsunção de todos os aspectos da vida.

A onda fascista que toma de assalto o mundo, por sua vez, nos lembra que todos os líderes da extrema-direita atual no mundo – de Bolsonaro a Trump, passando por Viktor Orban, na Hungria, e Éric Zemmour, o pré-candidato francês ainda mais fascista que os Le Pens, e outros – têm em seu ‘currículo’ episódios de extrema misoginia, além de ataques a todas as demais minorias. Isso deve nos lembrar que a luta antifascista não terá sucesso se não aprender com as lutas das mulheres, as lutas antirracistas, as lutas das populações LGBTQIA+, grupos que já viviam na pele mais sistematicamente as ameaças à democracia, que só passaram a ser levadas a sério quando tais líderes chegaram ao poder e ampliaram seus ataques. A chegada de Gabriel Boric à presidência, no Chile, uma vitória para toda a América Latina contra a extrema-direita no continente, por exemplo, seria impensável sem o ciclo de lutas populares ocorrido no país, no qual a esquerda tradicional esteve ladeada de igual para igual pelas populações originárias e as feministas, entre outras minorias “identitárias”, conseguindo, antes da eleição, vitórias como a formação de uma assembleia constituinte efetivamente representativa da diversidade étnica, racial e de gênero do país, assim como a descriminalização do aborto. E mesmo no Brasil, sufocado pelo fascismo e pela paralisia na própria esquerda, um dos movimentos mais potentes vistos durante a pandemia foi o dos povos indígenas, lutando em Brasília contra retrocessos terminais a seu direito à terra, onde a presença das mulheres foi também fundamental.

Por fim, voltemos à pandemia. O que o vírus nos mostrou, em sua forma intrinsecamente “democrática” de infectar quem estiver à frente, foi que o capitalismo não é, nem nunca será capaz proteger e cuidar de toda a humanidade. O que vimos, em particular, no êxito do fracasso da política bolsonarista para a pandemia – ou na de seus aliados privados, como a operadora Prevent Senior – é que a consequência incontornável do neoliberalismo é a aplicação de uma necropolítica que precisa deixar e fazer morrerem os morríveis, para que o pouco de trabalho reprodutivo bancado pelo Estado e pela sociedade se restrinja unicamente àquilo que serve ao capitalismo: manter força de trabalho e demanda para sustentar uma economia que (ainda?) não funciona sem isso.

Usando a resposta à situação pandêmica como alegoria para o “normal” efetivamente novo que queremos construir, podemos ver na centralidade do trabalho reprodutivo das mulheres, essencialmente coletivo e comunal (e, aqui no Recôncavo, por exemplo, perpetuador de saberes ancestrais negros e indígenas que trazem consigo riquezas incomensuráveis, porém desprezadas), um modelo de sociedade cujo funcionamento é repensado de baixo pra cima, a partir de um entendimento de que os cuidados precisam ser atribuição de toda a sociedade para consigo mesma, enredados profundamente em todo seu tecido, e não mera solução para problemas de produtividade capitalista. Esse modelo só será possível com uma radical distribuição da riqueza por toda a sociedade, em vez de sua concentração inédita (e que AUMENTOU durante a pandemia), mas também com uma renovação radical da luta de classes para efetivamente incluir seus outros intra-classe – mulheres, povo negro, indígenas, LGBTQIA+ etc – por vezes, secundarizados em discursos e práticas na esquerda tradicional. Que usemos este Dia Internacional de Luta das Mulheres para repensar nossos caminhos, pois a realidade não nos dará muitas chances mais de construir um mundo que não seja o “velho novo normal” da necropolítica capitalista.

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