Na semana passada, a Votorantim, gestora da Usina Hidrelétrica da Pedra do Cavalo, anunciou, principalmente por meio de carro de som, que iria realizar um teste de calha no rio Paraguaçu no dia 4 de agosto. O teste foi adiado para o dia 17 de agosto, mas a luta é para que ele não aconteça sem que haja garantia de direitos e sem diálogos com as comunidades tradicionais pesqueiras, quilombolas, pesquisadores e ambientalistas. Para isso, há uma petição com abaixo-assinado “Não ao teste de calha do Paraguaçu: Ajude a manter o sustento das comunidades tradicionais”. Segue o link de acesso à petição: http://chng.it/vKLHHqvw.
Uma marisqueira moradora São Roque, distrito de Maragogipe, contou que as comunidades não foram avisadas devidamente sobre o teste de calha, já que oito dias não são suficientes para que as 100 comunidades que vivem no entorno da Reserva Extrativista Marinha Baía de Iguape (RESEX) sejam acessadas. “Seria necessário que eles fizessem uma reunião com todas as comunidades, fizessem um informe, uma comunicação muito bem elaborada para conseguir alcançar esse povo todo, porque muitas pessoas iam pescar agora no dia 4, muitas pessoas iam pegar essa água, porque algumas não sabiam que esse teste ia acontecer. O certo mesmo seria avisarem com um ou dois meses de antecedência, para as pessoas ficarem ativas e não irem lá, para não acontecer até um acidente grave”, explicou.
Janete Barbosa Sena, pescadora, marisqueira e quilombola , descreveu estar vivendo uma situação de pânico e medo por conta do teste. “Fomos pegos de surpresa e agora estamos aí tentando ver de que forma a gente vai resolver essa situação, porque, se isso acontecer dessa forma, vai nos causar danos talvez irreversíveis. O que nos resta agora é tentar ver se a gente barra esse teste de calha, porque o momento não é oportuno”, afirmou.
Consultamos a professora da UFRB Alessandra Caiafa que está acompanhando a situação, ela nos explicou que o teste de calha basicamente consiste na avaliação da capacidade máxima de vazão das comportas que o Rio Paraguaçu à jusante da Barragem Pedra do Cavalo pode suportar, ou seja, é uma simulação próxima do que ocorria nas grandes enchentes que os municípios de Cachoeira e São Félix eram acometidos antes da existência da Barragem Pedra do Cavalo.
Desrespeito e falta de informações
Além de não discutir a intenção de fazer o teste de calha com as comunidades tradicionais, a empresa responsável não passou as informações necessárias para que os principais afetados pudessem se preparar.
Para a nossa informante marisqueira , seria importante uma prévia comunicação com as comunidades não apenas para que fossem informadas do teste, mas também porque as comunidades têm experiência. “O que é soltar a água, o momento que pode soltar, o momento que não pode, até onde eles podem ir com essa água, e o pessoal pode dar mais ou menos a base, se a maré grande, se a maré pequena, se a maré vazando, se a maré enchendo, mas que seja um nível de água que o rio possa suportar, mas suportar sem degradar, sem tirar a força do sustento das comunidade tradicionais”, elencou a marisqueira.
Ananias Nery Viana, quilombola ativista, residente no quilombo Kaonge, município de Cachoeira, falou da falta de informação e do desrespeito para com as comunidades tradicionais. Ele chamou atenção para o perigo que seria se o teste fosse mesmo acontecer em cima da hora como estava programado, podendo até mesmo surpreender pescadores com seus barcos já na água. “Eles falam de um teste de calhas, que é um nome científico que eles dão, mas um teste de calhas são 1500 metros cúbicos de água por segundo durante todo o dia, imagine a quantidade de água que vai soltar dentro do leito do rio”, ponderou Ananias.
Sobre o desrespeito com as comunidades tradicionais, o quilombola ativista foi bem categórico ao afirmar que as comunidades quilombolas nunca foram respeitadas. “Nunca teve a possibilidade de ter investimento, de ter políticas públicas para essas comunidades, e por isso as comunidades vivem nessa situação ruim, e na área de alimentação pior ainda, porque as comunidades só têm esses “supermercados de deus”, que é como a gente chama o mar e o manguezal, que é o lugar que a comunidade vai pegar o seu sustento, e aí a gente vê nesses momentos essa falta de respeito. Os governos sempre quiseram passar como um trator em cima das comunidades”.
Apesar da importância desse tipo de teste, a professora Alessandra Caiafa também defende que as comunidades tradicionais deveriam ter sido informadas previamente, bem como aponta outras questões fundamentais para a realização. “É sim um teste importante, mas não no momento atual. Fora o fato da população não ter sido avisada com a antecedência necessária, e até hoje o órgão responsável, INEMA, e a empresa que procederá o teste e que explora a barragem, a Votorantim, não terem se reunido com as comunidades tradicionais, bem como com autoridades legais para explicar a dinâmica do teste, quais foram os estudos prévios e quais serão as medidas para mitigar as perdas e os impactos para as populações tradicionais e para o ecossistema Manguezal”, colocou a professora.
Os impactos do teste de calha
A professora Alessandra Caiafa pontuou que há o entendimento tanto pelas comunidades locais da RESEX tanto pelos pesquisadores que fazem estudos na região que os impactos são catastróficos. “São incomensuráveis os danos a fauna e à flora. Esse aporte de água doce de uma única vez, proveniente da barragem, que será cerca de 150 vezes maior que o habitual e extemporânea, pode ser considerado até um Crime Ambiental. Causará impacto negativo em quase todas as populações de pescados, o que atrapalha a atividade econômica da pesca no médio prazo”.
Já ficou evidente que o teste de calha vai impedir a pescaria e mariscagem, principais meios de sobrevivência das comunidades tradicionais. Com sua experiência de marisqueira e pescadora, Janete Barbosa Sena apontou alguns danos que podem acontecer com um teste de calha.
De acordo a Janete, o teste vai resultar no alagamento dos espaços de sobrevivência das comunidades, que são os manguezais e as coroas, e nem imaginam por quanto tempo; a dessalinização da água, a água vai ficar doce; a mortandade do pescado e do marisco por conta da água doce (caranguejo, siri, ostras, sururu, entre outros, apodrecem); e outras espécies desaparecem e, por fim, a fome. “A fome que vai atingir cerca de 20 mil pessoas que sobrevivem desse estuário. Não foi passado quem vai se responsabilizar pelo sustento dessas famílias que vivem diretamente da pesca. Isso aí não foi nos informado. Ninguém fala disso, como se não tivesse se tratando de vidas humanas e também da vida do meio ambiente. Isso aí não vai só matar as pessoas de fome, mas também as espécies existentes nesse estuário, que é a nossa forma de sobreviver”, completou Janete.
A marisqueira moradora de São Roque também se mostrou bastante preocupada com o que pode acontecer depois do teste, ainda mais levando em consideração que muitas famílias estão sobrevivendo apenas com o auxílio emergencial por conta da pandemia do coronavírus. “O problema é que depois dessa água doce vem a escassez. O povo já parou de receber o auxílio emergencial, com essa escassez que fica, o povo vai comer o que? Aí a gente tem que saber o que eles vão fazer para se adequar à realidade das comunidades, porque as comunidades já estão cansadas de sofrer, já estão cansadas disso. A gente não quer nada deles não, a gente quer o território livre para uso. Serão cinco ou seis meses com a pescaria ruim. Como é que a barriga vai esperar tanto tempo?”, defendeu.
Ananias Nery Viana relatou as dificuldades que as comunidades estão enfrentando para sobreviver nesse período de pandemia, o que, sem dúvida, vai se agravar caso o teste de calha realmente aconteça agora. “A gente está lutando por campanha para conseguir alimentação para algumas famílias que estão passando por dificuldades, imagina uma quantidade de água dessas nesse teste que vão fazer, o impacto dentro da comunidade. Aí é querer matar a comunidade de fome, na verdade”.
As falas deixam mais que evidentes os impactos danosos que o teste de calha pode trazer tanto para as pessoas das comunidades tradicionais quanto para o meio ambiente. Contudo, também ficou claro que, caso o teste venha realmente acontecer, que os responsáveis pela realização levem alguns pontos em consideração, em especial a opinião das comunidades tradicionais, que sabem por experiência própria dos resultados depois do teste.
A moradora de São Roque contou que, da última vez que soltou a água (abriu as comportas), os lugares que têm areia ficaram todos abertos, acabando com um número expressivo de espécies como chumbinho, sururu, ostras e siri. Para ela, o ideal seria que o teste fosse feito entre novembro e janeiro, que é a época que tem menos água no rio.
Já Ananias Nery Viana defende que esse teste não aconteça, mas, caso venha acontecer, que aconteça depois da pandemia: “muito depois da pandemia, porque quando terminar a pandemia, ainda vem as dificuldades. Então a gente está brigando para que esse teste não aconteça agora. Isso para a gente é um desastre ambiental , um desastre social e um desastre mesmo na alimentação das pessoas, são muitas famílias de pescadores nos municípios de Cachoeira, Maragogipe e São Felix, há comunidade quilombola também envolvida nessa processo, porque fica no entorno da RESEX, e aí fica muito difícil. A gente sabe que os testes acontecem, mas agora não é o momento. A gente já vivenciou um teste de calha aqui e foi muito difícil, foi muito danoso”, finalizou.
Janete Barbosa Sena também defende a não realização do teste. “A gente já vem vivendo esse momento de pandemia, saímos de uma situação complicada que foi o derramamento do óleo, aquilo atingiu bastante a renda e o sustento dos pescadores e das marisqueiras, a gente nem tinha se equilibrado já apareceu uma pandemia que está nos atingindo bastante, e se esse teste vir a acontecer, vai ser uma catástrofe muito grande, que vai nos levar ainda mais à fome e à miséria”.
A direção da APUR está acompanhando a situação das comunidades e está a disposição para ajudar nesta luta para a suspensão do teste de calha enquanto as condições adequadas não estejam asseguradas. “Não podemos permitir que a população do recôncavo sofra com mais graves perdas e riscos incalculáveis, principalmente neste período da pandemia. É preciso exigir que o governo do Estado intervenha para suspender o teste neste momento”, defendeu o presidente da APUR, David Teixeira.
*As fotos que ilustram a matéria foram cedidas por uma das fontes.